Que pessoas tinham falecido e se eram distintas, foi a pergunta a que os cirurgiões e barbeiros poderiam responder com propriedade, nos dias a seguir ao Terramoto. A maioria das vítimas morrera no local da catástrofe, sobretudo com lesões na cabeça e hemorragias, mas muitas foram socorridas num espantoso esforço de improvisação. Logo no dia 3 de novembro de 1755, o rei ordenou aos cirurgiões e enfermeiros para se tratarem os feridos, recorrendo aos medicamentos do Hospital Real de Todos os Santos. Os cirurgiões acompanharam fidalgos e anónimos, ajudando a tratar as infeções, a maior causa de morte. Muitos feridos foram resgatados dos escombros, mesmo 7 dias depois da catástrofe. Uma rapariga foi resgatada 9 dias depois do terramoto, ainda com vida. Nos hospitais fizeram-se os inventários dos feridos, incluindo os membros fraturados e o tipo de ferimentos, num manancial de informação médica, invulgar na época.
Os cirurgiões e médicos não tiveram mãos a medir, trabalhando em condições caóticas. De tal forma que dias depois, a 18 de dezembro de 1755, morriam doentes afogados no Rossio, devido às cheias provocadas pelas chuvas, tal era ainda o estado caótico da cidade de Lisboa. Nos primeiros dias, os doentes foram socorridos em jardins de palácios particulares ou nos celeiros do Conde de Castelo Melhor, ou simplesmente entre as ruínas. A fevereiro de 1756 começaram a ser enviados para o Hospital Real de Todos os Santos, ainda em péssimas condições. Muitos foram para o mosteiro de S. Bento, pois eram incontáveis as vítimas, obrigando os cirurgiões a trabalharem sem parar durante meses.
Preocupa-se o cirurgião com as informações postas a circular sobre o Terramoto. Há quem diga que os estragos não foram tão graves e os mortos foram em menor conta. As notícias são vagas e pouco rigorosas. O medo condiciona o rigor da observação. Há quem tenha confundido pequenas rachas com cavernas. Mas ninguém esquece as pessoas queimadas vivas ou soterradas.
Na verdade, o Terramoto e a sua multidão de feridos muito contribuiu para se compreender melhor o estado precário do ensino da medicina em Portugal. Os cirurgiões portugueses eram descritos como obcecados pelas sangrias, embora considerados hábeis. O famoso professor de medicina Bernardo Santucci, fora criticado pela sua insistência na dissecação de cadáveres, e na importância das autópsias clínicas. O apuramento rigoroso das causas da morte contribuíam para se achar a raiz do mal que provocara a doença ou o trauma. A verdade é que os cursos de anatomia e cirurgia dados no Hospital de Todos os Santos, no Rossio, ajudaram a salvar vidas e pode dizer-se como no ensino da Medicina, o Terramoto teve um dos principais efeitos transformadores.
NA SALA DOS CONTOS:
Cirurgião com licença emitida pelo Hospital de Todos os Santos, em Lisboa. Embora a Igreja e o rei por vezes o proibissem, estudava anatomia e cirurgia em cadáveres. O cirurgião conta:
Depois de estudar medicina em Coimbra, consegui obter a minha licença de Cirurgião em Lisboa, onde também se formam Barbeiros Sangradores. As sangrias são o remédio mais comum, uma forma de lidar com muitas maleitas.
No dia do terramoto, fui direito ao Rossio, para onde muitos dos feridos foram levados e onde ficaram nas três semanas seguintes, abrigados em tendas, pois o Hospital Real de Todos os Santos não oferecia segurança. Além da destruição causada pelo terramoto, o hospital tinha ardido anos antes... Temo até que nunca mais volte a funcionar em pleno. Desde esse dia, não tenho tido sossego. Quando não estou a trabalhar no hospital, vou até aos arrabaldes da cidade, com fidalgos e pessoas caridosas, tratar de outros feridos e das suas infeções, a maior causa de morte.
Mesmo muitos dias depois do sismo, ainda retirámos sobreviventes de entre os escombros. Uma rapariga foi salva ao fim de nove dias! Que horror! Passar nove dias no escuro, sem saber se alguém me encontraria!
Há semanas que trabalhamos todos sem parar. Mas esta tragédia teve um aspeto positivo: o número de feridos causado pelo terramoto mostra quão precário é o ensino da medicina em Lisboa. Afinal, o meu antigo professor, Santucci, tinha razão. As pessoas só agora começam a perceber o que ele queria dizer quando afirmava que as autópsias eram necessárias “para descobrir a origem do mal e saber a sua causa”.
Os desenhos anatómicos (gravados por Michel Le Bouteux) do livro “Anatomia do corpo humano: recopilada com doutrinas medicas, chimicas, filosoficas, mathematicas”, da autoria de Bernardo Santucci, doutorado na Universidade de Bolonha e professor de Anatomia no Hospital Real de Todos os Santos, mostravam a evolução da medicina italiana, no rigor das descrições fisiológicas e anatómicas, na primeira metade do século XVIII.
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