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Conhecemos com detalhe cada decisão do governo régio e do secretário de estado, Sebastião José de Carvalho e Melo, através do livro publicado em 1758, Memórias das Principais Providências que se deram no Terramoto que padeceu a Corte de Lisboa no ano de 1755.
As Providências foram 241 medidas elaboradas pelo secretário de Estado Carvalho e Melo, assinadas pelo rei e executadas pelos seus ministros para responder às consequências do terramoto, manter a ordem em todo o reino, controlar os riscos e assegurar a sobrevivência da população. Carvalho e Melo visava uma tomada de decisões rápida e eficiente. Tinha noção de que os problemas de hoje se poderiam transformar nos pesadelos de amanhã. A propagação de doenças, a grande quantidade de corpos nas ruas, os muitos desalojados, a instabilidade dos edifícios, a fome, a especulação e as pilhagens exigiam uma resposta imediata.
Essas medidas foram mais tarde compiladas num livro. Era uma publicação magnífica, cuidadosamente impressa em papel de linho, com encadernação em pele e decorações douradas. O livro estava dividido em 13 secções — 12 para temas específicos e uma para questões diversas — que versavam sobre como minimizar o risco de epidemias e assegurar cuidados de saúde, manter a ordem, prevenir ataques de piratas, organizar a limpeza do entulho, garantir a segurança e a continuação das práticas religiosas, organizar os aspetos judiciais, fiscais e financeiros, e, por último, confiar ao engenheiro-mor do reino, Manuel da Maia, o plano de reconstrução de Lisboa.
As Providências, publicadas em livro, vieram responder ao debate que começava a surgir na sociedade portuguesa acerca de Carvalho e Melo. Uns viam-no como o homem que salvara Lisboa do caos e outros viam-no como um ditador que usurpara o poder do rei para assegurar que as suas crenças políticas, filosóficas e sociais se tornassem regra no reino.
Além de esclarecer o público sobre as medidas tomadas, o livro era também uma peça muito eficaz, no que historiadores viriam a designar «propaganda». Ao labirinto jurídico da tradição política, demasiado marcado pelo formalismo do Direito, sobrepunha-se a necessidade de responder, com velocidade e eficácia, a uma catástrofe sem precedentes.
O primeiro conjunto de medidas enfrentava o risco de epidemia, dada a decomposição dos cadáveres, acelerando os enterramentos ou despejo em alto-mar dos corpos encontrados nos escombros. Depois, a alimentação, com distribuição de mantimentos, desembarque e transporte das cargas, isenções fiscais, e pontos de venda. Em terceiro lugar, os cuidados de saúde e a hospitalização dos feridos, com ordens dirigidas ao monteiro-mor, ao duque de Lafões e ao abade de São Bento, transformando celeiros em hospitais, enquanto se reconstruíam as enfermarias.
Seguia-se a manutenção da ordem, evitando roubos, através de processos sumários e enforcamento dos criminosos apanhados em flagrante delito. Aos Corregedores dos Bairros, com ajuda do marquês de Marialva, estribeiro-mor, cabia vigiar os moradores e enviar para as obras de reconstrução os ociosos. A situação foi aproveitada para reprimir os amancebados e prender os pregadores responsáveis pelas profecias apocalípticas sobre catástrofe.
Foram deslocados os soldados necessários para evitar ataques de piratas e reprimir o contrabando. Os regimentos de Cavalaria seguiram para as zonas costeiras, e para Lisboa, foram enviados os regimentos de Évora, Cascais, Peniche e Setúbal, sendo nomeado como Superintendente Geral da ordem pública na cidade o Marquês de Tancos.
A reorganização judicial, fiscal e financeira, impunha a reinstalação de tribunais, construção de novos armazéns, instalação dos órgãos do governo, incluindo as Alfândegas do Açúcar e Tabaco, além da guarda dos cofres reais, com as despesas a serem custeadas pelo novo imposto de 4% cobrado sobre todo o comércio.
Por último, o arranque das obras de reconstrução, com medidas para desentulhar a cidade, evitando inundações, desocupando as ruas principais, dando orientações sobre o procedimento no caso de surgirem cadáveres. Na verdade, a cada dia surgiam novos problemas, incluindo a proteção dos valiosíssimos objetos e tesouros descobertos no entulho. Os engenheiros do rei efetuaram o difícil trabalho de averiguar as condições de segurança nos edifícios religiosos.
As providências ilustram a dimensão monumental dos problemas colocados, como era o caso das várias medidas sobre os materiais de construção, a sua origem, desembarque e manutenção. Também se impuseram os mesmos preços vigentes antes do Terramoto, no aluguer das casas, lojas e armazéns. Foi ordenada a medição das praças, ruas, casas e edifícios públicos, autorizando o engenheiro-mor Manuel da Maia a nomear engenheiros para o auxiliar. Uma extensa legislação regulava, com critérios muito apertados, a venda e compra de propriedades, financiamento e crédito nas obras de construção, a forma de avaliação e o pagamento de indemnizações a quem perdesse terra para serventias públicas, e sobretudo, definindo a reconstrução, tipo de fachadas, alinhamento e largura das ruas, e forma dos arruamentos, respeitando o plano geral do engenheiro-mor, Manuel de Maia.
São catorze, as Providências, arrumadas por assunto e assim descriminadas:
“I. Evitar o receio da peste que ameaçava a corrupção dos cadáveres, sendo inumeráveis e não havendo vivos para os sepultarem, pela precipitada e geral deserção dos moradores de Lisboa;
II. Evitar a fome, que necessariamente se havia de seguir, não só pelo motivo de não haver quem conduzisse os víveres, mas porque muitos armazéns deles haviam sepultado as ruínas e abrasados no incêndio;
III. Curar os feridos e doentes que estavam desamparados nas ruas em perigo certo de morrerem;
IV. Reconduzirem-se os moradores de Lisboa que haviam desertado, para se restabelecer a povoação, sem a qual nada se podia fazer;
V. Evitar os roubos e castigar os ladrões que haviam metido a saque a Cidade, despojando as Casas e os Templos;
VI. Evitar que pelo mar se desse saída aos roubos, e para este efeito rondar o Rio;
VIII. Mandar vir algumas Tropas do Reino para servirem ao grande trabalho da Cidade e seu sossego;
IX. Darem-se as comodidades precisas para o alojamento interino do povo;
X. Restabelecer o exercício dos Ofícios Divinos nas poucas Igrejas que se haviam salvado, ou em decentes acomodações interinas;
XI. Recolher as Religiosas que vagueavam dispersas e dar-lhes a possível clausura; XII. Ocorrer a diversas necessidades em que estava o povo, as quais por várias e avulsas se reduzem a uma classe separada;
XIII. Actos de Religião de Sua Majestade para aplacar a ira Divina e agradecer ao Senhor tantos benefícios;
XIX. Dão-se os meios mais conducentes para a reedificação da Cidade.”
Este livro, ao inaugurar uma nova forma de divulgação do governo político, assentava sobre três elementos essenciais.
A dedicatória clássica, mas bastante extensa e elaborada ao longo de seis páginas, clarificando, desde logo, a importância do rei D. José, como fundamento do regime.
A enunciação sistemática das Providencias, tanto as de teor religioso como as de teor prático, tomadas pelo rei, e com a ajuda de Deus, descritas ao longo de quarenta páginas. O conceito de “Providencias” introduzia no discurso político uma densidade teológica, muito vincada para os leitores do século XVIII. As Providências eram decalcadas da sabedoria divina, antecipando e prevendo as necessidades dos lisboetas, segundo a ordem do governo natural. Segundo o autor do mais importante Dicionário do século XVIII, Rafael Bluteau, o mundo não era um «ajuntamento de cousas fortuitas (…), a grande máquina do universo» impunha um «Arquiteto», tal como o navio não podia navegar sem um Piloto, e uma casa sem dono, seria contrária «a toda a boa razão». Este era o espírito com que o governo da monarquia, copiando as propriedades do governo divino, respondera aos desafios provocados pelo terramoto, tsunami e incêndios. De resto, uma ampla reforma legislativa – no sentido de racionalizar a ordem jurídica - tomaria o famoso nome de Lei da Boa Razão e seria publicada no ano seguinte, 1759.
A coleção de avisos, decretos e outros documentos do mesmo género, refletindo as medidas legislativas concretas, tomadas pelo rei e executadas sobretudo por Sebastião José de Carvalho e Melo para controlar as dificuldades sentidas em Lisboa e no resto do pais.
Este livro, com a sua encadernação luxuosa, e malgrado a longa dedicatória ao rei, que exalta o seu poder divino, fortalecia e justificava a posição de Sebastião José de Carvalho e Melo, mostrando quão eficaz fora a resposta do seu governo à catástrofe que se abatera sobre Lisboa. Sem se referir diretamente ao Secretário de Estado, o autor, Francisco Freire, um oratoriano muito erudito, poeta e tradutor de clássicos, integrava o grupo dos que procuravam formar em torno de Sebastião José um movimento de transformação da política régia. Mas também de monopolização do governo, a favor de um projeto político Iluminista, mas também musculado, ou despótico, o que tem levado a debates complexos sobre a consistência e direção do chamado pombalismo.
“Providência I: Aviso para o Marquês Estribeiro-Mor fazer tirar das ruínas o corpo do Embaixador de El-Rei Católico.
IL.MO e EX.MO Senhor
A Sua Majestade chega a notícia que o Embaixador de El-Rei Católico se acha debaixo das ruínas de suas casas, e me ordena diga a V. Excelência queira dar toda a providencia necessária a fim de ser tirado das mesmas ruínas. Deus guarde a V. Excelência. Paço de Belém, o primeiro de Novembro de 1755. Sebastião José de Carvalho e Mello. “
O embaixador de Espanha, o Conde de Peralada, morreu de camisa de dormir quando tentava fugir para a rua, esmagado sob o brasão de pedra dos Meneses, que ornamentava a fachada do palácio em que vivia. Foi talvez a morte mais ilustre do Terramoto de Lisboa, sendo por isso uma das maiores urgências recuperar o seu corpo, prestar-lhe os devidos cuidados, e assegurar que os ritos católicos eram cumpridos.
A rainha D. Mariana Vitória de Portugal mantinha com a mãe, a rainha D. Isabel de Espanha, uma correspondência assídua, muito rica em detalhes e muito calorosa. Na primeira carta escrita após o terramoto, depois de assegurar a Isabel Farnésio como a família real portuguesa se encontrava bem, apressa-se a referir a morte do embaixador:
“Minha querida Mãe,
Esta vai por um despacho extraordinário do Rei. Recomendei muito que vos seja enviada depressa, antes que vos chegue alguma falsa notícia que vos deixe em cuidados. Nós estamos todos vivos e de boa saúde, mil graças sejam dadas a Deus.
Agora terei a honra de vos contar o melhor que puder o funesto acidente que aconteceu no sábado às nove horas e três quartos da manhã. Sentimos o mais horrível tremor de terra (…) Corri para fora com a maior dificuldade, pois mal conseguia ficar de pé, saí pela escadaria árabe onde certamente, sem a ajuda de Deus, teria partido a cabeça ou as pernas pois não me podia aguentar e cheia de pavor, como podeis julgar, pois acreditava que a última hora tinha chegado. O rei veio ter comigo mais tarde, pois ele tinha fugido por outro lado. Minhas filhas ficaram no oratório e vieram depois ter connosco, mas, ainda que os seus aposentos ficassem um pouco arruinados, elas nada sofreram graças a Deus, mas depois disso estamos em tendas no grande jardim.
(…) Depois disso sentimos ainda alguns abalos de tempos a tempos, mas muito mais pequenos, graças a Deus, mas com tudo isso eles me aterrorizam infinitamente, pois em Lisboa está praticamente todo por terra e há muita gente esmagada entre outros o pobre Peralada [embaixador espanhol] e para acréscimo de sofrimento o fogo consumiu uma grande parte da cidade (…). 0 nosso Palácio [da Ribeira] está arruinado a metade e o que resta encontra-se queimado com tudo o que tinha dentro.
Perdoai-me, minha querida Mãe, não vos dizer mais, mas o estado e a confusão não me deixam tempo (...). Há desgraças horríveis e a desolação é geral. Peço-vos muito humildemente que reze a Deus para que continue a nos conceder a sua misericórdia e nos preserve, se essa for a sua vontade.
Senhora, de vossa majestade humilde filha.
Maria Ana Vitória
Belém, 4 de Novembro de 1755”
Fonte: Carta de Maria Ana Victória a sua mãe Isabel Farnésio, Belém, 4 de Novembro de 1755, Arquivo Histórico Nacional de Madrid, legajo 2312, transcrita em Caetano BEIRÃO, «O Terramoto de Lisboa de 1755 - Novos Documentos», Panorama, III Série, Nº1 1956
LOCAIS A VISITAR
- Museu de LisboaExplore
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PROVIDÊNCIAS on-line, Biblioteca Nacional de Portugal: http://purl.pt/6695
BIBLIOGRAFIA
Maria Isabel Braga ABECASIS, A Real Barraca. A Residência na Ajuda dos Reis de Portugal após o Terramoto (1756-1794), Tribuna da História, 2009.
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Borges de MACEDO, O Marquês de Pombal. 1699-1782, Biblioteca Nacional, Série Pombalina, 1982.
Nuno Gonçalo MONTEIRO, D. José, Na sombra de Pombal, Círculo de Leitores, 2006.
José SUBTIL, «Memória e Poder, o Terramoto de 1755», O Terramoto de 1755: Impactos Históricos, Livros Horizonte, 2007, pp. 209-225.
José SUBTIL, «Pombal e o Rei: valimento ou governamentalização?», Ler História, 2011, pp. 53-69. https://doi.org/10.4000/lerhistoria.1472
1755 O Grande Terramoto de Lisboa, 4 vols., FLAD, Público, 2005